Cidadãos franceses sempre foram bastante frequentes em solo cearense, especialmente no litoral. Agora, com a chegada de novos canais de intercâmbios, não somente culturais mas sobretudo econômicos, tais como o hub aéreo, o empreendedorismo de inovação e negócios em segmentos como economia do mar e energias renováveis, a relação entre Ceará e França tem boas condições de se intensificar. Sobretudo com a ajuda de instituições de fomento para reforçar essas intenções, tais como o Observatório Econômico França – Ceará (FranCE), que acaba de chegar ao Estado.
Não obstante o fato de a França figurar apenas na 18ª posição entre os maiores volumes de transações financeiras com o Ceará em 2019, contabilizando US$ 17.123.013 em exportações, e somente a 25ª (US$ 14.617.978) em importações, de acordo com o Observatório da Indústria da Federação das Indústrias do Estado (Fiec), a mera análise fria dos números não desanima quem vê bons motivos para direcionar suas atenções ao Ceará. É o caso de Benjamin Egot, um dos articuladores do Observatório FranCE, instituição privada, sem fins lucrativos, que busca promover interações econômicas entre a França e o Estado. Nascido na pequena cidade de Hirson, situada na fronteira francesa com a Bélgica, casado com uma cearense e residindo em Fortaleza há seis anos, o dirigente explica que a instituição surgiu com uma premissa básica: “Já há alguns anos morando por aqui, nunca percebi uma forte presença francesa, algo que já acontece há muito tempo no Sudeste e Sul do Brasil e isso sempre me incomodou”, conta.
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Egot afirma que tem percebido a chegada de investimentos internacionais cada vez com mais frequência ao Ceará, tais como a participação de Roterdã no Porto do Pecém, a alemã Fraport, além da chegada de alguns consulados, o que ainda não acontece com a França, sendo que a participação daquele país em negócios com o Brasil há tempos é bem marcante. “Empresas francesas são as maiores empregadoras estrangeiras aqui no Brasil, com agências como a Business France, que já possui escritórios no Rio e em São Paulo, assim como a Câmara de Comércio Francesa, que está presente no Sul e Sudeste, sendo a mais antiga do Brasil, com 120 anos, mas nada no Nordeste”, reforça.
“Na Região, ainda há pouca presença dos organismos franceses de venda do país, um mercado que representa, para importação, mais de 500 bilhões de dólares por ano”, exclama Philippe Gidon, mestre em Relações Internacionais e Ação no Estrangeiro pela Université Paris Panthéon-Sorbonne e professor do Curso de Comércio Exterior da Universidade de Fortaleza (Unifor).
“Há muita boa vontade e muita simpatia envolvida nas relações comerciais entre franceses e cearenses, mas pouco negócios efetivos, ainda que esporádicos, infelizmente, apesar dos grandes esforços e da proatividade dos governos cearenses. Mas diria que essa ligação ainda é mais cultural que propriamente comercial”
Phlippe Gidon, professor do Curso de Comércio Exterior da Unifor
Embora haja, como define o docente, uma certa “predisposição” histórica para os negócios, ainda existe um longo caminho para que o Estado possa fincar seus dois pés numa relação mais efetiva e duradoura com investidores franceses. Para tal, são bem-vindos esforços governamentais recentes como o do Consórcio Nordeste, do qual o Ceará faz parte, e é proveniente de uma tendência, ressaltada por Gidon, de que cidades e regiões busquem mais autonomia em relação à autoridade federal. “Isso já acontece bastante na França, e o próprio Ceará tem buscado essa aproximação nos últimos anos, inclusive promovendo a interlocução com certas regiões da China”, cita Gidon, que também é articulador do Observatório FranCE.
Isso, aliado à posição geográfica do Estado e a um alinhamento político positivo dos atuais governos cearense e francês, este que tem mantido uma nova postura em buscar mercados alternativos para ascender nos negócios de determinados setores, de acordo com o especialista, podem favorecer bastante esse relacionamento.
Turismo e mudanças no perfil
Uma dessas “portas de entrada” talvez já esteja “entreaberta” com o turismo internacional. Nesse setor, não há discussão: a Terra de Voltaire, Jean Paul Sartre, Victor Hugo e Claude Monet, dentre tantos outros, ocupa a liderança absoluta no Ceará. Para que se tenha ideia do impacto provocado pela inauguração do hub aéreo da Air France – KLM, em julho de 2019, portanto pouco mais de um ano após a conclusão do equipamento no Aeroporto Internacional Pinto Martins, a capital cearense recebeu 74% mais turistas estrangeiros do que no mesmo período do ano anterior. Números da Agência Nacional de Aviação (Anac) registraram mais de 200 mil passageiros de fora do País, boa parte deles oriundos da França. De janeiro a dezembro de 2019, passaram por aqui mais de 75 mil franceses, ou cerca de 1/5 do total de visitantes estrangeiros no Estado, conforme a Secretaria do Turismo (Setur).
“Hoje, os franceses que vemos aqui no Ceará estão mudando de perfil. Antigamente os turistas eram mais velhos, normalmente vinham para se aposentar, abrir uma pousada. Inclusive já há muitos franceses em Fortim, Canoa Quebrada e Jericoacoara, por exemplo. Creio que essa ponte aérea (hub) facilitou bastante essas trocas. O perfil dos que vêm para cá agora é um pouco mais jovem. Gente que vem curtir o kitesurfe, a praia, e também chegam investidores. Há casos de pessoas que abriram uma empresa para promoção dessa modalidade esportiva aqui no litoral, embora a pandemia tenha atrapalhado um pouco tudo isso”, aponta Egot.
Para o professor Philippe Gidon, porém, esse movimento que antes da pandemia do novo coronavírus era crescente, terá que esperar para absorver os estragos provocados pela crise. “O governo cearense havia trabalhado, com muito sucesso, a problemática turística. Mas esta, por enquanto, infelizmente, está fora de cogitação. É dos setores que mais sofreu e que mais deve demorar para retomar uma normalidade, mas isso não quer dizer que a médio prazo não seja uma área priorizada”, projeta.
Cargas pelo ar
Ainda analisando a repercussão do hub da Air France-KLM, o que chamou a atenção, porém, foi o aumento substancial no volume de mercadorias que chegaram por via aérea a partir de 2018, quando de sua inauguração. Em 2017, um ano antes, foram pouco mais de US$ 1 milhão em importações chegando pelo aeroporto. Em 2019, esse valor praticamente foi multiplicado por dez. Em sentido contrário, o movimento de mercadorias importadas da França por via marítima, que registrou US$ 15,5 milhões em 2016, caiu para US$ 3,7 milhões no ano passado.
Tal tendência foi mantida em 2020, mesmo com a urgência provocada pela pandemia. É que uma parte expressiva dos US$ 4,1 milhões importados com o selo de procedência francês por via aérea até julho deste ano foi composta por material hospitalar, como reforço no combate dos governos estadual e do município de Fortaleza ao coronavírus.
De acordo com o professor Philippe Gidon, devido aos dados ora inexpressivos no comércio entre as duas representações, fica difícil enumerar quais os setores que mais se destacam. “Esses números acabam dependendo de ações esporádicas, como uma empresa X que conseguiu fechar contrato, seja de exportação ou importação, com uma empresa francesa. Então, não há um volume consistente e identificável. Esse é o problema quando se trabalha com volumes pequenos. Não há um produto que a gente poderia enxergar como tradicional no comércio com a França. Há apenas uma operação que acontece de vez em quando, e ano a ano esse destaque maior de um produto tende a mudar”, comenta o especialista.
Ainda assim, aponta Gidon, há uma certa predominância de produtos orgânicos e químicos importados da nação europeia para cá, enquanto no sentido contrário, com a ascensão da Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), o aço acaba assumindo um protagonismo entre os itens exportados. No mais, quando se fala em empreendimentos menores, sustenta ele, há uma forte diversificação. “Estamos falando de calçados, têxtil, artesanato, castanha de caju e outros produtos tradicionais das pequenas e médias empresas”, elenca.
‘Autoestrada’
Ambos os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que um setor que tem tudo para render bons frutos nessa relação é o da inovação tecnológica. Como ressalta Benjamin Egot, a consolidação de um ecossistema dessa natureza, aliada à presença de um hub tecnológico, proporcionado pelo Data Center da Angola Cables, em funcionamento na Praia do Futuro, pavimenta o caminho para um futuro promissor nos acordos entre o Estado e o país europeu.
“Pouca gente sabe, mas a França tem uma relação muito íntima com a inovação, com startups. Existe um projeto (selo) chamado La French Tech, que tem escritório em São Paulo e acolhe todo esse ecossistema, promovendo-o em todo o mundo, desenvolvendo muita coisa. Antes da pandemia, estava para lançar um hub de inovação, La Fabrique, uma incubadora gigante de startups em São Paulo. Vejo totais condições de trazer isso para o Ceará, pois já há muita coisa de inovação sendo feita aqui”, comenta Egot.
Para Gidon, esse segmento apresenta uma outra “grande janela” francesa para a economia do Estado. “O Ceará possui um bom potencial de desenvolvimento nessa área tecnológica. Ainda mais possuindo uma verdadeira ‘autoestrada’ para transmissão de dados oferecida pelo Data Center, que pode servir de polo de atração para diversos empreendimentos, inclusive franceses, nessa área”, afirma, corroborando o forte interesse da economia daquele país em fomentar uma abordagem tecnológica com novos acordos.
Energias Renováveis e economia do mar
Intensos e sedutores, o vento, o mar e o sol locais costumam trazer quase a totalidade dos turistas franceses que aqui desembarcam, mas também podem tornar-se ferramentas promissoras na atração de negócios.
“Quando o Consórcio Nordeste foi à França, no fim do ano passado, esse foi um dos assuntos mais debatidos, pois muitas das organizações que eles encontraram lá têm o meio ambiente e o setor das energias renováveis como prioridade para desenvolver. E a gente vê que o Ceará está muito avançado nessa questão. Não tem como negar que é um lugar abençoado por isso, e na França já há várias empresas que trabalham nesse mercado”, opina Egot.
Em viagem à Europa no último mês de novembro, em sua passagem por Paris juntamente com o consórcio de governadores nordestinos, o governador Camilo Santana se reuniu com dirigentes das empresas Voltalia (energia renovável) e Golar Power (gás natural).
“Energias renováveis e economia do mar são duas atividades que se tornaram alvo de bastante interesse do governo francês”, concorda Gidon, fazendo uma ressalva: “Mas esse processo deve demorar a se desenvolver, pois agora as empresas estão mais preocupadas em sobreviver diante dessa crise mundial”.