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Biotecnologia do pescado: novas oportunidades despontam para o Ceará

O Ceará tem potencial na atração de novos negócios e na geração de emprego e renda. FOTO: Adobestock

O setor de pescados sempre foi uma tradição e, por assim dizer, uma vocação do Ceará. Nesse sentido, o Estado explora muito bem os seus 573 quilômetros de litoral e tem na “economia do mar” uma forte aliada no desenvolvimento econômico local. Entretanto, um novo horizonte se revela. Perspectivas que ultrapassam as atividades tradicionais. A saber, a pesca da lagosta e de peixes em geral, assim como o cultivo de camarão. Porém, as inúmeras possibilidades proporcionadas pela biotecnologia são capazes, agora, de elevar este setor a um outro patamar. Além do aumento da produtividade em relação ao cultivo e à pesca, os subprodutos gerados pelo pescado podem resultar em aplicações importantes para a indústria, saúde, agricultura e os cosméticos. Como resultado, novas oportunidades despontam para o Ceará.

Na prática, a biotecnologia é um conjunto de técnicas aplicadas à biologia e que envolve manipulação de organismos vivos para a geração de produtos com aplicações diversas. “No caso do pescado, existem inúmeras possibilidades do uso de biotecnologias a partir de organismos aquáticos, tanto vegetais como animais, invertebrados e/ou vertebrados, que englobem o isolamento, identificação e caracterização de moléculas e suas atividades biológicas que possam ser sintetizadas para a produção de biocompostos para a aplicação na indústria, na medicina, nos fármacos, cosméticos etc.”, explica Silvio Carlos Ribeiro, secretário executivo do Agronegócio da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará (Sedet).

Um bom exemplo, expõe, é a utilização de macroalgas e microalgas marinhas, a partir das quais se pode gerar produtos como biodiesel, óleos para diversas aplicações, suplementos alimentares, dentre outros.

Ao mesmo tempo, a evolução da biotecnologia também pode colaborar para o combate às pragas e na ampliação da produção agrícola. 

Resumindo, um mundo de possibilidades se desenha para a economia estadual. Diversos setores da indústria, com destaque para as áreas de medicamentos e cosméticos, e o agronegócio, por exemplo, teriam no Ceará espaço para crescer, ao decidirem se instalar próximos a abundância de insumos oriundos da aplicação da biotecnologia do pescado. Serão novos negócios, assim como mais emprego e renda.

Campo fértil para o Estado

Segundo o cientista-chefe de aquicultura da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Felipe Matias, com a aplicação da biotecnologia do pescado “podemos ter novos sistemas de cultivo, produtos derivados, novos arranjos organizacionais, desenvolvimento de embalagens, uso de plásticos biodegradáveis entre outras inovações aqui no Estado”.

Na esteira de novos negócios, exemplifica, surge o cultivo superintensivo de camarão, baseado no reuso da água. “Atualmente, a carcinicultura rende R$ 1 bilhão, mas poderá chegar a R$ 12 bilhões com o reuso da água”, afirma.

Nessa direção, ele frisa também o potencial de interiorização do cultivo de camarão marinho. “Para se ter uma ideia, 40% do cultivo de camarão marinho no Estado, hoje, é feito em água doce. Especialmente na região do Jaguaribe, na cidade de Jaguaruana e municípios adjacentes, e isso pode avançar para outras regiões”, afirma.

Ainda no que tange ao apoio à produção, Matias destaca o uso de drones e robôs subaquáticos a fim de monitorar a água dos açudes. “Assim será possível desenvolver ainda mais a piscicultura no Estado”, justifica.

Na sua avaliação, o Ceará tem um enorme potencial na atração de novos negócios e na geração de emprego e renda com o uso da biotecnologia do pescado. A começar pela posição geográfica estratégica (próximo à América central, do Norte, Europa e África), logística consolidada (hubs aéreo e marítimo) e pela dotação de conhecimento científico capaz de gerar novas tecnologias e técnicas, assim como pela disponibilidade de mão de obra crítica para o setor.

“Temos na Universidade Federal do Ceará (UFC) a graduação em engenharia de pesca, as pós-graduações nessa mesma área e em biotecnologia de recursos aquáticos e pesqueiros; e possuímos também os institutos federais de educação. Enfim, todo um investimento em educação que foi realizado nos últimos 30 anos”, destaca.

Ao mesmo tempo, ele acrescenta a política de segurança na gestão de recursos hídricos do Ceará, que possibilitou o Cinturão das Águas, e que ganha força, agora, com a transposição do Rio São Francisco até o Estado.

“Ou seja, o Ceará tem a vocação e a tradição da pesca e toda uma economia do mar favorável. Ao mesmo tempo, fez todos os investimentos necessários em infraestrutura e educação, construindo, dessa forma, as condições necessárias para a produção e o escoamento do pescado. Porém, agora, é preciso não só produzir milhares de toneladas de pescado, mas operacionalizar todo o nosso potencial. Desenvolver e implementar novas tecnologias a fim de passar a produzir uma quantidade suficiente de aplicações a partir dos subprodutos do pescado, cujo valor agregado é muito maior”, afirma.

Tecnologia “made in Ceará”

Um dos maiores expoentes na aplicação da biotecnologia do pescado no Ceará é o Projeto Pele de Tilápia, vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da UFC.

O tratamento de queimados com pele de tilápia tem tido muitos êxitos, desde seu início em 2015, com o uso em pacientes do Instituto Dr. José Frota (IJF), em Fortaleza.

Uma técnica simples e barata. Afinal, explica o Dr. Carlos Paier, pesquisador e um dos coordenadores do projeto, a tilápia é um dos peixes mais produzidos no Ceará e no Brasil. “Portanto, a sua pele, existente em abundância e que seria descartada no consumo desse peixe, tem agora a aplicação na regeneração da pele humana. Com isso, resolvemos, ainda, três questões importantes: conseguimos melhorar a saúde de milhares de brasileiros a baixo custo; protegemos o meio ambiente, evitando o descarte da pele do peixe, e agregamos valor à indústria da pesca”, destaca.

De acordo com ele, a pele da tilápia tem duas vezes mais colágeno que a pele humana. Desse modo, melhora a cicatrização, evita infecções e perda de líquidos e proteínas. Funciona como um curativo biológico bem menos doloroso para o tratamento de queimaduras de segundo e terceiros graus. 

Além de ser utilizada em queimaduras, a pele de tilápia, como biomaterial, tem aplicação em feridas, cirurgias ginecológicas e medicina regenerativa. 

Contudo, com o desenvolver da técnica, Paiol conta que, agora, eles conseguiram obter a pele de tilápia liofilizada, uma espécie de desidratação a frio, que diminui os custos logísticos e de manutenção do produto.

Ao passo que está em estudo a produção de uma matriz dérmica a partir da pele da tilápia, por meio de um processo que retira seletivamente as células do peixe e deixa apenas a parte proteica, responsável pela reconstituição da pele humana. “Dessa forma, obtemos uma espécie de tela biológica, capaz de ser utilizada dentro do organismo humano em cirurgias, e não mais apenas para uso externo”, celebra Paiol.

Se não bastasse, o grupo de pesquisadores também trabalha na extração do colágeno da pele da tilápia que pode ser utilizado na fabricação de medicamentos de uso tópico.

Mas as inovações produzidas em solo cearense a partir da biotecnologia do pescado não param por aí, emenda o cientista Alexandre Craveiro, que também é diretor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P,D&I) das empresas Fertsan, em Itarema,  e BR Inova, que embora localizada em Portugal, utiliza técnicas 100% cearenses no seu processo produtivo.

“Aqui no Ceará, a biotecnologia é aplicada na produção da base tecnológica da linha de produtos da FertSan. Todos eles direcionados para aplicações agrícolas, desde o preparo e tratamento do solo até em produtos pós-colheita visando o aumento do shelf-life (vida útil) dos produtos e ações antimicrobianas. Notadamente ações antifúngicas naturais”, revela.

Conforme disse, produtos estes obtidos tendo como base os biopolímeros, que são compostos poliméricos produzidos por seres vivos. 

“Em nosso processo conseguimos obter esses compostos, no caso biopolímeros marinhos, a partir de resíduos (carapaça do camarão) da carcinicultura e de algas através de processo inédito e patenteado. Na sequência são produzidos derivados utilizando processos químicos e enzimáticos dos quais estão incluídos os oligossacarídeos (oligoelementos), uma família de compostos com tamanho menor do que os biopolímeros de origem, que também possuem importantes atividades nas áreas da agropecuária (rações e fertilizantes) e saúde”, explica.

Conforme disse, no que diz respeito à saúde, é possível, a partir dos polímeros marinhos, a obtenção de anticoagulantes moleculares, produto de alto valor agregado; assim como produtos voltados para fabricação de medicamentos que podem ajudar no controle do mal de Parkinson e na doença de Alzheimer.

Já na BR Inova, emenda Craveiro, a biotecnologia do pescado está voltada para produtos na área da saúde tanto humana como animal. 

“Existe um potencial enorme de recursos para o desenvolvimento dessas e outras inovações aqui no Ceará, possibilitando a fabricação de uma série de produtos, atraindo, por sua vez, outras indústrias, que serão beneficiados por eles”, afirma. “O fato é que o conhecimento tem papel fundamental na geração de novos negócios e empregos”, conclui.

Articulação governamental para fomentar o setor

Segundo o programa Ceará Veloz, do governo do Estado, o agronegócio e a economia do mar são dois dos 11 clusters para acelerar a economia do Ceará. Nesse contexto, “a aquicultura é um dos grandes agronegócios cearenses”, reforça o secretário executivo do Agronegócio da Sedet, Silvio Carlos Ribeiro, lembrando que o Estado apoia em projetos para o desenvolvimento do setor.

“Além da extração da pele de tilápia, que é um subproduto desse peixe, importante para tratamentos de queimados, podemos citar ainda a maricultura (cultivo de organismos marinhos em seus habitats naturais), que também tem grande potencial de produção de biocompostos, mas carece ainda de muitos estudos para identificações das melhores formas de cultivo (estruturas, locais, logística, etc.)”, afirma.


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Ele aponta ainda o papel articulador do Estado para fomentar o setor de pesquisa e o mercado: “o Ceará possui uma vasta gama de pesquisadores e instituições de pesquisa, como a UFC, o Labomar (Instituto de Ciências do Mar) e os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE´s), onde linhas de pesquisas biotecnológicas a base de produtos pesqueiros estão sendo desenvolvidas”.

“Ao passo que a Sedet, por meio do Programa Cientista Chefe da Funcap, busca incentivar e apoiar pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos com alto valor agregado. Outra importante parceria é a Fiocruz”, emenda Ribeiro.

Conforme disse, diante desse quadro, capaz de atrair novos negócios para o Ceará, ele cita um projeto desenvolvido na Praia da Baleia, no litoral oeste do Estado. “Ali, uma empresa do Rio de Janeiro compra toda as algas para a elaboração de cosméticos de primeira linha”.

Juntamente com o suporte do governo estadual ao setor, ele destaca os programas de incentivo e financiamento das instituições financeiras, como o Profarma (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), voltado para biotecnologia em geral. 

Ainda de acordo com ele, existe também a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), sediada no Rio de Janeiro, que é uma empresa pública brasileira de fomento à ciência, tecnologia e inovação em empresas, universidades, institutos tecnológicos e outras instituições públicas ou privadas. “Ela é uma empresa vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação e que tem linhas de crédito, porém não específicas para biotecnologia do pescado”, explica. 

A importância do pescado no Agronegócio cearense

Segundo a Sedet, dos 21 principais produtos da pauta de exportação do agronegócio cearense, o pescado ocupa a 7ª colocação com a lagosta, a 13ª com peixes (exceto atuns) e a 15ª com o atum. 

Já com relação à produção, em 2019, foram produzidas, por exemplo, entre 35 e 40 mil toneladas de camarão. Destas, oito mil toneladas (cerca de 20%) foram consumidas no Ceará. Contudo, entre 25 e 30 mil toneladas foram comercializadas para o Rio de Janeiro e cinco mil toneladas entre os Estados de São Paulo e Santa Catarina. “Durante a pandemia, o Rio de Janeiro, por exemplo, consumiu todo o camarão congelado cearense”, pontua Ribeiro.

Desafios na atração de investimentos

Na avaliação de Felipe Matias, cientista-chefe de aquicultura da Funcap, embora o Ceará detenha esse enorme potencial para a aplicação da biotecnologia do pescado a favor da sua economia, reunindo todas as condições na atração de novos negócios, o setor ainda enfrenta desafios.

Conforme disse, podemos citar, primeiramente, as barreiras culturais e financeiras. “Existem barreiras culturais e financeiras para a adoção das novas tecnologias. Culturalmente, há a crença de que não se deve mudar o que está dando certo, assim como existem empresários que precisam primeiro ver para crer. Já do ponto de vista financeiro, temos aqueles que acreditam que adotar novas tecnologias pode sair caro e desconfiam do retorno financeiro do investimento”, exemplifica.

Em seguida, Matias lembra as limitações burocráticas que ainda cercam os investimentos e que precisam ser transpostas.

Nesse sentido, ele vem apostando e buscando apoio para a implementação, aqui no Ceará, de um centro de inovação, onde seriam identificadas novas tecnologias desenvolvidas ao redor do mundo, realizando um trabalho de benchmarking, propiciando, assim, o desenvolvimento de tecnologias locais, as quais, por sua vez, seriam disseminadas para o mercado cearense e nacional.

“Estamos falando de inovações capazes de diminuir custos de produção, aumentar a produtividade e gerar produtos de maior valor agregado”, justifica.

Ainda de acordo com ele, um centro que reunisse uma infraestrutura administrativa, de logística, de pesquisa e capacitação, assim como apresentasse uma grande área onde seriam implementadas pequenas unidades produtivas a fim de mostrar, na prática, as inovações desenvolvidas.

“Seria um local onde empresários, instituições financeiras, órgãos ambientais e demais envolvidos pudessem conferir as pesquisas publicadas e as inovações desenvolvidas em funcionamento. Isso poderia ajudar a transpor as barreiras culturais e financeiras existentes. Onde eles pudessem descobrir a viabilidade econômica, a possibilidade de lucro e a alta atratividade propostas”, afirma.

Com o que concorda o cientista Alexandre Craveiro: “nós temos todo um complexo de empresas no Pecém, existem os grandes grupos empresariais cearenses e as fundações privadas com as quais precisamos abrir essa discussão, a fim de que possam aplicar recursos em novas tecnologias. Dessa forma, seria possível gerar mais patentes e novos negócios, beneficiando toda a cadeia produtiva e o Estado”. “Precisamos nos colocar novamente nesse processo de geração de novos negócios para o pescado e, assim, transformar o Ceará. Nosso objetivo é ousado. A gente pretende absorver todo os subprodutos da indústria pesqueira estadual na geração de novos negócios”, emenda.

E adianta: “nosso grupo tem planos de expansão no que diz respeito a volumes e diferentes aplicações e compostos. Estamos trabalhando fortemente na tecnologia para aproveitamento dos resíduos de peixes e produtos extraídos de algas e microalgas marinhas. Estamos em busca de parceiros que queiram trabalhar junto conosco no aproveitamento desses resíduos da aquicultura”.

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