Mesmo em meio a tanta incerteza provocada pela pandemia do novo coronavírus, as oportunidades têm surgido para os olhares mais atentos. No caso da cultura do mel no Ceará, inconstâncias no cenário internacional e uma ressignificação do consumo nacional podem tornar o produto local mais atrativo. Indo mais além, a diferenciação pode estar em algo que ainda é muito pouco explorado, em termos de marketing, pelos produtores locais: a pureza do nosso mel.
Com a boa temporada de chuvas no Estado em 2020, o panorama é de otimismo para o setor, especialmente devido aos números que apontam um aumento de 20% na safra neste ano. Esta resultou em um incremento de 35% nas exportações de janeiro a setembro de 2020, se comparado ao mesmo período de 2019.
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O fim de um longo período de estiagem, que teve início em 2012 no Estado, foi extremamente positivo para o setor, mas a chegada da pandemia também acabou por influenciar nessa recuperação. A instabilidade do mercado internacional – especialmente o chinês que detinha, em 2018, 24% da produção mundial -, aliada à necessidade reavivada de uma saúde mais preventiva, algo comumente associado ao consumo de mel – fez com que o preço deste e de seus derivados voltassem a subir. É o que traz o relato de Augusto Júnior, presidente da Câmara Temática do Mel (CT Mel), ligada à Agência de Desenvolvimento do Ceará (Adece).
“Até este ano, o preço do mel estava muito baixo no mercado, praticamente inviabilizando a produção. Com a Covid, o mercado voltou-se novamente ao Brasil e para o Nordeste, e o preço do mel quase dobrou, com seu quilo atingindo uma média de R$ 8 e, em alguns casos, chegando a R$ 9. Com isso, houve um grande pool para retomar essa produção aqui. A quadra invernosa ajudou bastante e o mercado conseguiu dar uma aliviada com rentabilidade para nosso produtor”, conta ele.
Para sedimentar esse crescimento, no entanto, é necessário se desvencilhar das dependências de chuvas e dos humores do mercado externo. “É um setor bem organizado, composto em grande parte por produtores da agricultura familiar. Porém, possui um potencial muito grande de crescimento, devido à exportação e à qualidade do que se produz no Ceará. Um mel bem apreciado, não só por estrangeiros como pelo público nacional. O que falta ainda é um pouco de agregação de valor, principalmente na questão de embalagens e marketing”, avalia Silvio Carlos, secretário executivo do Agronegócio da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e do Trabalho (Sedet).
E se a intenção é agregar valor, uma atenção maior aos detalhes é proposta pelo professor Breno Magalhães Freitas, que integra o Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará (UFC). “O que o Brasil poderia explorar e, infelizmente, não explora, principalmente no Nordeste, é o fato de que os nossos méis são méis de mata, de plantas silvestres de uma maneira geral”, afirma.
Para o docente, essa característica traz consigo duas grandes vantagens: “Uma é que isso assegura ao consumidor na outra ponta que não terá resquício de defensivo ou de algum produto que normalmente é usado em culturas agrícolas. Obviamente, em mata, você não os usa. Outro diferencial é que como a gente trabalha com abelhas africanizadas, historicamente não se utilizam antibióticos, fungicidas e acaricidas, como acontece com abelhas europeias, que são mais suscetíveis a determinadas pragas. Assim não se corre o risco de o mel ter esses resíduos”, argumenta.
“É um erro quando alguém tenta importar uma rainha europeia para nossa região. Isso vai tirar característica de resistência que nossas abelhas já têm a parasitas e às doenças. Nosso mel é praticamente orgânico porque não precisamos usar nada na colmeia para combater pragas e doenças”, confirma Augusto Júnior.
Diversidade
Além da pureza, a diversidade na coloração pode ser uma fator para agregação de valor ao mel local, conforme Irineu Fonseca, presidente da da Federação da Apicultura do Ceará (Face), que reúne 265 associações de apicultores em 165 municípios cearenses. “Hoje, você pode ter certeza e anotar: o mel cearense é um dos melhores do mundo, com um sistema que resulta em uma boa produtividade em todas as regiões. Existe até uma tabela que gosto de exemplificar: nosso mel começa o ano quase transparente e termina com um escuro. E contamos com essa cadeia produtiva em toda essa coloração do mel”, ressalta.
Fonseca afirma acreditar em uma ótima safra em 2021, com a expectativa para uma nova edição do fenômeno “La Niña” por aqui e uma boa distribuição de flores por todas as regiões do Estado. “A predominância no Estado é de grandes matas, o que faz com que a florada comece desde cedo, com um mel bem clarinho, e terminemos a temporada com méis monoflorais, começando ali pela aroeira. Depois vem o caju, a oiticica e termina com o juazeiro, que sempre dá flores em uma época boa. Isso faz com que tenhamos uma expectativa considerável este ano”.
Chuvas
No Ceará, são vários e de diversas regiões os municípios com vocação para o cultivo de mel. Estão na lista, entre outros, Novo Oriente, Parambu, Tauá, Arneiroz, Aiuaba, Chaval, Pedra Branca, Mombaça, Iguatu, Cariús, Jaguaribe, Limoeiro do Norte, Morada Nova, Quixeramobim e Pacajus, além de boa parte da região do Cariri, no sul do Estado.
Nessas cidades, muitos pequenos apicultores, que formam a base do setor em todo o Nordeste – eram 4.150 na região, em 2017, de acordo com o Censo Agropecuário daquele ano – , comemoraram a melhora no índice de chuvas em 2020. Mas a água que vem do céu é mesmo tão fundamental para o cultivo do mel? Para Fonseca, sim.
“Com a chuva, aumenta o índice da produção de resinas, que é a própolis. Ou seja, não temos como prescindir dela. No verão, temos produzido, em certas regiões, a própolis da jurema preta, mas é aquela (planta) que cai a chuva e com oito dias floresce. Um pé alimenta 20 caixas, no sistema de pólen, e 40 caixas de própolis. Então, somos 100% dependentes das chuvas”, sustenta.
Para o professor Breno Magalhães, nem tanto. “O problema é que tivemos seis anos de seca. Não de pouca chuva, mas de seca. Obviamente, como você precisa de florada para produzir, se não tem flor, não irá produzir. Mas nossas plantas na caatinga são adaptadas à estiagem. Se as chuvas são reduzidas, o período de florada é menor. Então, se não estiver preparado naquele momento, vai produzir muito pouco. Ainda assim, vai ver que atividade foi menos afetada pela pouca chuva que outras na agropecuária”, defende.
Subprodutos do mel também em alta
Além da maior demanda registrada em 2020 para o mel em si, seus subprodutos estão em alta no mercado nacional e internacional, especialmente durante a pandemia. O melhor exemplo é o extrato de própolis, que vem de uma resina para proteger a colmeia de invasores, fungos, bactérias e até vírus e, portanto, ajuda a aumentar a imunidade, teve alta expressiva em seu valor de mercado. O quilo, que custava em torno de R$ 150 a R$ 200, está sendo vendido com preços que variam de R$ 500 a R$ 700, dependendo da coloração.
Outros produtos oriundos do trabalho das abelhas que estão se destacando é a geleia real – alimento produzido pelas operárias para alimentar a rainha, com propriedades semelhantes às do própolis – e o próprio pólen apícola, que também é comercializado como reforço à imunidade e tem propriedades anti-inflamatórias, custando de R$ 120 a R$ 180/kg. “Nosso pólen é riquíssimo e chega a ter 242 tipos, diferentes e comestíveis, na divisa com o Piauí”, aponta Irineu Fonseca.
Estrutura e políticas públicas
De acordo com o Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), em seu relatório “Evolução na Produção de Mel na Área de Atuação do BNB”, de abril de 2020, o Ceará ainda sente os efeitos da seca nos últimos anos e, juntamente com Rio Grande do Norte e Pernambuco, está entre os estados que mais enfrentam dificuldades para se recuperar.
Produtores e pessoas ligadas à indústria do mel sonham em voltar a patamares do ano de 2011, quando chegou-se a 4,17 mil toneladas produzidas. A partir de 2018, depois de ficar sempre abaixo das 2 mil toneladas, finalmente a produção voltou a crescer, chegando a 2,7 mil toneladas em 2019 e com a expectativa de fechar este ano em 3,5 mil toneladas. Hoje, já é o 10º produto mais exportado do agronegócio no Ceará, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com um volume de negócios entre US$ 4 e US$ 7, segundo dados da Sedet.
Ainda assim, há muito a ser feito diante de um cenário que, tal qual o de boa parte da Região Nordeste, sofre com a “carência de insumos, máquinas e equipamentos apícolas”. Para continuar se desenvolvendo, essa indústria tem buscado se organizar como pode. “Estamos marcando reuniões com todos os entes, a Câmara do Mel, as federações e a Assembleia Legislativa, entre outros envolvidos, para que a gente possa entender como é essa demanda crescente pelo mel e produtos da apicultura e como produtores podem se preparar para um novo momento no setor. Há toda uma expectativa de crescimento, mas, para crescer, precisamos estar estruturados”, reconhece o secretário Silvio Carlos.
Para Fonseca, a aposta deve ser na qualificação dos pequenos produtores, com o auxílio de políticas públicas para reforçar todas as cadeias produtivas. “Nós, da Federação, temos conversado muito com apicultores. Primeiro, fomos ouvi-los. Conseguimos realizar 70 seminários em 142 municípios, com 42 dias de campo. Estamos ensinando ao apicultor cearense o ‘ABC’, o que é uma abelha, com sua parte biológica, produção e manejos. Temos uma escola apícola com 600 alunos aprendendo sobre a própolis, que é o grande ouro verde do sertão, e 750 sobre a apicultura tropical. Isso tem impulsionado bastante o desenvolvimento”, informa, fazendo elogios a ações como o Projeto São José.
Esse projeto é uma iniciativa da Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) -, que desde 2018 entregou 54 casas de mel (unidade fabril aonde o apicultor leva seu mel para ser extraído de maneira correta e higiênica, sem contaminação, para seguir aos entrepostos, que, por sua vez, processam o mel para exportação, ou direto ao comércio), implementos apícolas, com um número considerável de colmeias entregues, e também diversos EPIs. “Será algo muito importante, pois nossa safra começa ali por fevereiro e março (de 2021) e vai até maio/junho”, afirma.
Nas esferas do poder, os apicultores também têm buscado mais representatividade. Segundo Augusto Júnior, existem dois projetos de lei tramitando na Assembleia Legislativa do Estado. Um diz respeito à meliponicultura (que produz abelhas nativas, melíponas e sem ferrão), com a regulamentação das espécies nativas, no sentido de evitar sua extinção, por intermédio do estímulo à criação das mesmas. E há outro para a regulamentação da apicultura (abelhas europeias e africanas). “Seria uma espécie de marco da apicultura no Estado”, descreve.