A pandemia expôs a fragilidade do transporte público em seu conceito mais básico. Sabendo-se que somente o modal Ônibus responde por quase 86% das viagens em transporte coletivo no País e que o confinamento derrubou a demanda em até 70%, é fácil imaginar o impacto no caixa dos operadores, sustentado, predominantemente, pela tarifa, uma conta que não fecha. Por conta disto, pelo menos 56 cidades brasileiras foram afetadas em 2021 por greves rompimentos contratuais ou intervenções, conforme mapeou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
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O fato tornou urgente e inadiável o avanço da gestão na busca por receitas adicionais para uma atividade social e economicamente vital. Mais do que um desafio para a sobrevivência do setor, está aberta uma enorme oportunidade para os antigos e para novos agentes buscarem o equilíbrio financeiro. Como? Oferecendo serviços eficientes e a preços justos aos brasileiros de todas as grandes cidades a partir de variadas soluções e de maneira coordenada entre poder público e área privada para tornar a mobilidade urbana uma política de Estado e não de governo.
Quem há muito vem debatendo o tema é o WRI Brasil, que integra o World Resources Institute, uma instituição global de pesquisa com atuação em mais de 60 países. É voltada a estudos e implementação de soluções sustentáveis em clima, florestas e cidades, em parceria com governos, empresas, academia e sociedade civil.
Sobreviver, renovar e prosperar são os verbos a serem conjugados pela cadeia do segmento e que descrevem a construção de um novo círculo virtuoso para o transporte coletivo. “O que é bom para o transporte coletivo, é bom para as pessoas, para o clima e para a economia”, diz o diretor do programa de Cidades do WRI Brasil, engenheiro Luís Antônio Lindau. Para ele, as cidades e líderes que perceberem e abraçarem essa perspectiva estarão mais perto de oferecerem um serviço de qualidade para a população e de se tornarem referências no Brasil e no mundo.
Um dos fundadores e ex-presidente da Associação de Pesquisa e Ensino em Transportes (ANPET), Lindau entende que as soluções passam pela tecnologia. E um dos caminhos é o da eletromobilidade, geradora de oportunidades de negócios. “Há variadas iniciativas envolvendo a eletricidade e movimentos de montadoras ingressando nesta alternativa juntamente com distribuidoras de energia especializadas em adequação de redes e abastecimento de veículos elétricos”, garante.
Antes de mais nada, entretanto, é preciso solucionar problemas estruturais de modo a oferecer um transporte urbano sustentável, inclusivo e de qualidade para todos.
“Cidades terão de reimaginar o transporte coletivo – dos modelos de contrato e financiamento à integração física, temporal e tarifária –, para viabilizar redes multimodais, implantação de infraestruturas, aquisição de frotas mais limpas e uma operação mais coordenada e eficiente”
Luís Antônio Lindau, diretor do programa de Cidades do WRI Brasil
Para o WRI Brasil, ao mesmo tempo em que equaciona o problema atual, o setor deve enfrentar os desafios de médio e longo prazos. E as opções incluem ordenar a ocupação do território, integrar as diversas opções de transporte na escala metropolitana e garantir estabilidade financeira e capacidade para investir em infraestrutura de baixo carbono.
Fortaleza e Goiânia
Especialistas apontam inúmeros caminhos para se atenuar alguns problemas e garantir melhorias sensíveis na qualidade do serviço. É o caso das faixas dedicadas para ônibus, que propiciam maior eficiência, regularidade e ganhos de tempo, já implantadas em algumas cidades. Outra saída é o escalonamento de horários, inclusive adotado por Fortaleza para evitar aglomerações.
Pesquisa de Origem e Destino feita entre 2018 e 2019 mostrou que quase 36% de toda a demanda se concentrava em 4h do dia, sendo 2h no período da manhã e 2h no da tarde. Em iniciativa conjunta da prefeitura de Fortaleza com o governo do Ceará e representantes de diversos setores econômicos, planejou-se a retomada das atividades com faixas horárias distintas para o início e o término da jornada de trabalho de cada setor que não se configura como atividade essencial. Enquanto atividades como construção civil e indústria passaram a iniciar às 7h, o setor de serviços começou a funcionar a partir das 8h, o poder público às 9h e o comércio às 10h.
A medida reduziu em 26% a demanda no pico da manhã e 19% no pico da tarde. A redução permitiu otimizar a frota de ônibus necessária para atender à demanda, o que, a longo prazo, pode diminuir os custos de operação do sistema e, consequentemente, reduzir o preço da tarifa, beneficiando economicamente o passageiro.
Mesmo procedimento foi adotado em Goiânia pela Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo (CMTC), que faz a gestão e fiscalização do transporte coletivo também em outros 18 municípios. Foram estabelecidas cinco faixas horárias e depois 12 faixas adaptadas a cada setor econômico com efeitos positivos.
Embora no Brasil o tema seja tabu, no mundo o subsídio é uma realidade nos melhores sistemas de transporte coletivo chegando a quase 50%, como mostrou levantamento feito junto a 22 cidades europeias. Estudo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) identificou que apenas 12 cidades brasileiras se beneficiam com algum tipo de subsídio que não chegam a 15%, entre 35 sistemas de ônibus urbanos que operam 59,1% da frota nacional. Nos sistemas metroferroviários, a média de subsídio é de 35% dos custos, passando de 80% no caso de trens urbanos. A WRI Brasil defende a utilização de critérios sobre o “quanto” e o “como” avançar, de modo a que esta alternativa efetivamente gere novos recursos que garantam qualidade ao serviço.
Além de subsídios, o cardápio de fontes adicionais de receitas inclui o aprimoramento de impostos e taxas territoriais, já que sabidamente o transporte coletivo estruturante e com qualidade gera valorização imobiliária, o que repercute em um valor mais alto de IPTU nas regiões beneficiadas. Lindau não tem dúvidas de que as cidades podem direcionar parte dos recursos da valorização para a manutenção dos serviços.
Taxar o uso do carro
Outra polêmica fonte de recurso pode vir do uso do carro a partir da criação de um fundo de mobilidade municipal. Enquanto o subsídio ao transporte coletivo enfrenta resistência, o uso do carro vem sendo estimulado. Reduziram-se impostos para a compra e alargaram-se avenidas, ergueram-se viadutos enquanto o transporte coletivo ganhou pouco espaço para circular livre dos engarrafamentos.
Frota triplicada
Basta saber que a frota de automóveis e motocicletas cresceu 331% de 2001 a 2020, curva que continua crescente, inflando as estatísticas no trânsito com maiores custos e perda de produtividade no trabalho, além do aumento dos congestionamentos e da poluição atmosférica. Os carros ocupam 70% das vias públicas e transportam somente 30% das pessoas, enquanto que emitem cerca de 4 vezes mais poluentes locais e 2 vezes mais poluentes de efeito estufa por passageiro em relação ao ônibus.
Várias cidades latino-americanas, europeias e asiáticas já cobram pelo uso do carro investindo em transporte coletivo. Segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), carros e motos respondem por 85% dos investimentos em infraestrutura viária e dos custos ambientais e de saúde do transporte urbano, em comparação a 15% do transporte coletivo. “É justo cobrar por esses impactos para subsidiar o transporte coletivo, que beneficia toda a coletividade e hoje é bancado apenas pelas pessoas que o utilizam?”, questiona Lindau.
Impostos sobre combustíveis, taxas de licenciamento de veículos e taxação do congestionamento são outras fontes em potencial. No Brasil, uma das poucas medidas consolidadas para corrigir essas distorções é a cobrança pelo estacionamento rotativo em via pública, valor considerado ainda baixo por especialistas. Londres, que tem pedágio urbano para o acesso à zona central, recolhe anualmente mais de R$ 1 bilhão.
Outra opção é a taxação de congestionamento que reverte em melhorias em infraestrutura viária para ruas, pontes, pedestres e ciclistas, além do sistema de ônibus. Trata-se de uma tarifa, ainda não praticada no Brasil, para o acesso de meios de transporte motorizados a vias urbanas congestionadas nos horários de maior tráfego, iniciativa já tomada por Cingapura desde 1975, além de Estocolmo e Londres.
E também tramita no Brasil o projeto para a cobrança aos motoristas dos aplicativos (5 mil carros com previsão de arrecadar R$ 57,7 milhões) pelo uso intensivo das vias. O valor teria destinação exclusiva para melhorias urbana. Especialistas defendem a necessidade de direcionar parcela maior do IPVA para o setor, hoje disputado por outras áreas, como a educação (20%).
Da mesma forma, o setor espera receber maior parcela da CIDE -Combustíveis, que pouco destina aos municípios. Está em andamento no Congresso Nacional projeto de lei que prevê a destinação desses recursos para um fundo dedicado somente ao custeio e investimentos em transporte coletivo, a exemplo do que ocorre em Bogotá, na Colômbia, que cobriu cerca de 20% dos investimentos das três primeiras linhas do Sistema BRT Transmilênio.
Gestão e planejamento
As teses e práticas apontadas pela WRI são vivenciadas e confirmadas pela engenheira de Transporte, Ivanice Schutz, secretária adjunta de Mobilidade Urbana em Niteroi/RJ, que acredita que o transporte público é uma oportunidade. “Desafio porque não se pode perpetuar o modelo atual apenas evitando a sua falência e esperando nova crise”, disse ela, que defende a prática do conceito mais amplo de mobilidade nos grandes centros urbanos.
“Todos os sistemas bem-sucedidos e viáveis como na Alemanha e na França, por exemplo, não vivem somente da tarifa paga pelo usuário porque ampliaram a visão sobre a abrangência do transporte”
Ivanice Schutz, secretária adjunta de Mobilidade Urbana em Niteroi/RJ
Para ela, que acompanha de perto o Plano Diretor de Niterói, é preciso mudança na visão empresarial e que as ações de mobilidade caminhem juntas, com gerenciamento estratégico e planejamento traduzidos em polos mais diversificados de atividades ao longo das vias com multisserviços para remunerar os agentes econômicos, ao mesmo tempo em que encurta distâncias e evita maiores deslocamentos.
A engenheira Schutz diz que o Brasil anda na contramão das soluções mundiais. A valorização dos terrenos empurra as pessoas para as periferias, justamente um contingente de pessoas que trabalha nos centos urbanos e utiliza o transporte público a valores insuficientes para remunerar quem opera e oneroso para quem paga.
Para ela, cabe ao Poder Público trabalhar a base de dados já disponível, utilizando os sistemas de informação e os aplicativos em favor de uma gestão mais qualificada voltada às pessoas. Ela também concorda que é preciso inverter a lógica de que a cidade é do cidadão e não do automóveis.