Por muitas gerações, pessoas que sempre dedicaram sua vida ao trabalho no campo costumavam olhar para o céu e rezar. Era uma das escassas alternativas com as quais contavam para ter um bom proveito em sua atividade, especialmente em estados perpassados pelo clima semi-árido como o Ceará. Nos últimos anos, porém, o quadro vem mudando substancialmente, com a utilização cada vez mais disseminada de inovação tecnológica no agronegócio. É aquela nova fibra de algodão que deixa o produto mais resistente a pragas e com um fio de melhor qualidade, um bio-estimulante nanotecnológico que melhora desenvolvimento de hortaliças ou simplesmente um software que apresenta soluções para monitorar sua produção. Essas e outras muitas “invenções” têm proporcionado, além de manejos mais modernos, mais e mais sustentabilidade às cadeias produtivas, que se por um lado se rentabilizam, por outro, tornam-se menos carentes dos humores da natureza.
Outra marca dessa “revolução” se apresenta no surgimento das startups voltadas para esse tipo de negócio, como um dos tantos indícios de uma mudança de mentalidade entre os players do segmento. Ambiente propício para a consolidação da Agricultura 4.0 – assim chamada porque viria a ser a “quarta revolução tecnológica no campo” -, que, de forma bem resumida, seria o uso das tecnologias aliadas à preservação dos recursos naturais com um consequente aumento na produtividade.
Eficiência essa que cresceu, de acordo com dados do Censo Agropecuário de 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), muito impulsionada pelas inovações. Mesmo sem aumento na área plantada, por exemplo, a soja subiu de 2,5 mil para 3,3 mil quilos/hectare plantado do ano de 2006 ao de 2017. Já na produção leiteira, o Estado deu um salto de 460 milhões de litros em 2014 para 800 milhões em 2019. Tudo isso graças a melhorias genéticas, tanto a animal como a vegetal, aposta na automação e novos usos, entre outras apostas.
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“O agricultor cearense, por muito tempo, foi focado na agricultura de sequeiro, de subsistência. Agora vem uma nova geração: a de seus filhos, que tiveram, nos últimos anos, uma educação melhor (em relação à dos pais) e que tem evoluído bastante no Interior, no meio rural”, assinala Silvio Carlos Ribeiro, secretário executivo do Agronegócio da Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Ceará (Sedet).
Para o gestor, o fato de a geração mais recente ter acesso aos benefícios da internet e a novos conceitos tecnológicos vem ajudando o Estado na execução de um salto tecnológico. “É o filho quem vai buscar essa tecnologia e desenvolver programas de gestão de propriedade rural. Desde tecnologias simples, mais acessíveis ao produtor rural, como também o desenvolvimento de suas próprias tecnologias. Ele tem a possibilidade de gerar renda na propriedade dele, com produtos de alto valor agregado, que economizam água e que possam usar energias alternativas”, completa Ribeiro.
Academia como celeiro
Muitos desses jovens, a propósito, estão por trás de novos empreendimentos em startups, não obstante o movimento ainda seja um tanto tímido no Estado, com cerca de 15% das iniciativas do gênero no Nordeste, de acordo com a pesquisa Radar Agtech Brasil de 2019. A região, por sua vez, detém apenas 4% das chamadas agrotechs – ou agTechs – do País. O panorama, contudo, não necessariamente deixa de se apresentar como promissor, com alguns destes novatos se entusiasmando pelo agronegócio nos bancos da academia.
Foi o caso de Ruan Oliveira. A concepção para o novo empreendimento surgiu a partir da tese de doutorado de uma colega no programa de pós-graduação em Agronomia/Fitotecnia da Universidade Federal do Ceará (UFC) do Laboratório de Entomologia Aplicada (LEA). A estudante, junto com Oliveira, viria a ser uma das sócias fundadoras da IN Soluções Biológicas, uma startup de base tecnológica voltada para o controle de pragas agrícolas, tudo de forma biológica, como o próprio nome sugere.
“O projeto de doutorado desenvolvido apresentou resultados tão promissores que os produtores começaram a buscar o produto para comprar, e a partir daí tivemos a ideia de transformar essa pesquisa em negócio”, relata Oliveira.
A ideia consiste em um agente de controle biológico, um inseto, chamado Trichogramma pretiosum. Guiado por um sinal químico até seu hospedeiro, o bichinho é um parasitoide de ovos de insetos-praga, entre elas a popularmente conhecida mariposa, impedindo de nascer o que viria a ser uma lagarta com potencial devastador para a lavoura.
Já outras oportunidades se desenham a partir da observação atenta a diversos cenários, inclusive os oriundos de novas legislações. No caso da Sisagri, a solução para rastreabilidade e segurança de alimentos – hortaliças e frutas – em toda a cadeia produtiva surgiu da Instrução Normativa nº 2. Lançada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a norma obriga os produtores a rastrear frutas e vegetais frescos produzidos e comercializados no Brasil.
“Vimos o desespero dos produtores, que pensavam que seria um bicho de sete cabeças, porque realmente (a norma) cobra um certo nível de organização, profissionalizando um pouco os micro e pequenos estabelecimentos rurais”, conta o CEO da startup, Jefferson Fortes.
Longo caminho até a aceitação
Serviços como o da IN Soluções Biológicas se propõem a agregar alternativas ao manejo de pragas. Entretanto, como trata-se de uma tecnologia nova, disponível para substituir os cada vez mais indesejáveis agrotóxicos, muitos produtores acabam ficando céticos com o uso de inimigos naturais. “Utilizamos os próprios insetos benéficos (predadores e parasitóides) para controlar os insetos-praga. E essa forma de controle, apesar de ser milenar, acaba não sendo bem entendida pelos produtores mais velhos e com menor grau de escolaridade. Muito se avançou nos últimos anos, devido ao trabalho de assistência técnica fornecida pelas empresas de controle biológico, porém ainda falta esforço do poder público de levar essas tecnologias para aquele grupo menos favorecidos”, analisa Oliveira.
O que muitos pequenos produtores desconhecem é que os frequentes recordes de produção nos últimos anos para o segmento se deve largamente aos investimentos em sustentabilidade. Segundo ressalta Oliveira, as tecnologias verdes, como são conhecidas as ferramentas sustentáveis de produção, vieram para transformar o sistema agrícola nacional, principalmente reduzindo a dependência de insumos químicos, como fertilizantes e agrotóxicos, o que contribui para uma produção mais limpa, econômica e ecologicamente correta.
O diretor da startup afirma que é possível destacar dois grandes exemplos de como essas tecnologias revolucionaram o sistema de produção de duas commodities nacionais: a soja e a cana-de-açúcar. Na primeira, houve a incorporação de bactérias fixadoras de nitrogênio assimiladas ao sistema daquela cultura. Isso permitiu uma redução na ordem de mais de 80% na utilização de fertilizantes nitrogenados nos cultivos de soja. Ou seja, essas bactérias são capazes de fixar o nitrogênio atmosférico e disponibilizá-los para as plantas.
O outro caso apontado por Oliveira é o controle da broca-da-cana, principal praga encontrada nos canaviais, que antigamente era controlada exclusivamente por agrotóxicos extremamente danosos ao ser humano e ao meio-ambiente. “Com a adoção do uso de dois parasitoides (Trichogramma pretiosum e Cotesia flavipes), foi possível ter uma eficiência de controle até maior do que com o uso de agrotóxicos”, argumenta ele, acrescentando que o sucesso no controle da praga se espalhou por todo o País, fazendo com que o Brasil se tornasse referência mundial em programas de controle biológicos.
Feiras pelo mundo
Uma das fundadoras da startup SharinAGRO, originada no Campus da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Quixadá e única representante latino-americana em um hackathon da Microsoft, em maio de 2019, na região de Seattle, nos Estados Unidos, a estudante Nathália Pereira começou a se interessar pelo tema devido a uma experiência pessoal. Uma alergia alimentar e a baixa tolerância a ultraprocessados fez com que ela mergulhasse em inúmeras pesquisas sobre alimentos orgânicos.
“Em Quixadá, não se encontram esses produtos nos supermercados e em Fortaleza você até encontra, mas a preços muito altos. E eu, como universitária, tenho limitação econômica. Aí pensei: por que também não ajudar os pequenos agricultores ou comunidades de produção agrícola a dispor desses aplicativos para vender seus produtos?”, relata a estudante de 24 anos do curso de Engenharia de Software, que desde então, com dificuldade, tem buscado conciliar a participação em congressos e feiras nacionais e internacionais dedicados à temática com os compromissos profissionais.
No evento norte-americano, sua equipe apresentou um protótipo que utiliza aprendizagem de máquina (subcampo da ciência da computação) para avaliação da fertilidade do solo, baseado em fotos da cromatografia de Pfeiffer. A proposta central era compartilhar dados com pequenos agricultores, acompanhando-os desde o plantio à colheita, passando informações sobre produção orgânica, acondicionamento correto dos produtos e alimentação saudável.
Mais recentemente, a pesquisadora tem se dedicado a um edital para um concurso de um fundo amazônico de origem belga. Em conjunto com alunos do curso de Comércio Exterior da Universidade de Fortaleza (Unifor), sua equipe busca concretizar um modelo de negócios para o pós pandemia de coronavírus. Baseado em uma solução digital, o projeto almeja auxiliar pequenas associações extrativistas de produtos orgânicos em exportações.
“Nossa ideia é que nossa startup consiga auxiliar na desburocratização para facilitar negócios entre produtores locais e investidores estrangeiros. São associações que às vezes têm produção farta, mas não conseguem encontrar mercados”, justifica a estudante, à procura de parcerias com pequenas empresas do agronegócio que desejem se iniciar em empreendimentos internacionais.
Cadeias favorecidas
O uso das inovações no campo também tem sido extremamente proveitoso, no Ceará, para a evolução de duas de suas principais cadeias produtivas: a leiteira e a ovinocaprinocultura. Uma dessas novidades é a silagem empacotada, que, por já vir pronta para o consumo dos animais, acaba por tornar desnecessário um longo processo anterior. O que demandaria ao produtor, além do tempo necessário para cavar, plantar o capim, irrigar, colher, triturar e depois comprimir os materiais num silo, o custo de aproximadamente R$ 120 a R$ 130 por tonelada. Hoje, por um pouco mais, R$ 170 em média, o criador já recebe o produto pronto para consumo.
“Temos aí uma solução na alimentação para as duas principais cadeias do Estado, em termos de valor bruto, da produção pecuária. É uma grande alternativa para cerca de 90 mil produtores do Sertão Central, na região de Quixadá e Quixeramobim”, conclui o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec), Flávio Saboya.
O dirigente ressalta ainda a importância do acompanhamento especializado de técnicos para que essas novidades possam alcançar, de forma mais eficiente, a agricultura familiar e pequenos e médios produtores. Para tanto, cita o trabalho desenvolvido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-Ceará) e seu Projeto Agronordeste. A iniciativa desenvolve soluções para o semi-árido nordestino, oferecendo assistência técnica e gerencial. Ao todo, já são 144 turmas constituídas de 30 produtores e cada uma recebe um técnico especializado com dedicação exclusiva em uma cadeia produtiva específica – como a do leite – durante dois anos.
“Essas turmas serão referência. Temos, mais ou menos, 45 sindicatos e cada um deles terá aproximadamente três turmas. E estes vão desencadear esse processo de uma assistência técnica diferenciada e voltada para aquela cadeia produtiva que eles escolheram”, explica Saboya.
Novos cajueiros e algodões
Uma das instituições com participação massiva no processo de evolução da chamada Agricultura 4.0 no Brasil é, sem dúvida, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com extensa contribuição no desenvolvimento de uma maior segurança alimentar aliada à produtividade.
Um desses trabalhos se destaca na contribuição ao crescimento da cadeia da cajucultura: o desenvolvimento do cajueiro anão precoce. Mais resistente a pragas, com tamanho mais favorável aos tratos culturais e uma promessa de produtividade até três vezes maior, a espécie viabilizada por tecnologia de clones contribuiu imensamente para o incremento de 161,9% na produtividade da cadeia em 2017, segundo levantamento do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene).
“O produtor não percebia (a importância dessa inovação) antes da seca. Quando se conseguia produzir alguma coisa, ele não queria trocar as árvores (cajueirais gigantes), porque o ser humano é resistente à mudança. O que acontece é que, quando veio a seca, foi devastada de 20 a 30% da área de cajueiros dos estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. Os que sobreviveram, e ganhando dinheiro, foram os produtores que utilizavam a tecnologia clonal.”, expõe o chefe adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, Gustavo Saavedra.
É também da Embrapa uma pesquisa que tem permitido uma retomada da cultura do algodão no Estado, num projeto que conta com a coordenação da Sedet. O estudo, iniciado em 2019 e conduzido pelo pesquisador Fábio Aquino de Albuquerque, do Campo Experimental em Barbalha (CE), potencializou a cultura no clima seco do semi-árido Ceará, fazendo com que o algodão daqui descesse a um custo de 30% a 50% em relação ao similar produzido na região do cerrado brasileiro.
“Existe uma especialidade muito grande de cada produtor e cada tipo de cultura. Cada um deles faz suas pesquisas internacionais e acaba por trazer um tipo de planta, clones e sementes híbridas, etc. Mas a grande maioria, pelo que sei, são internacionais, e não nacionais. E isso é uma coisa que o governo brasileiro poderia incentivar, que a Embrapa crescesse mais, para que o Brasil tivesse uma maior autonomia”, opina Tom Prado, CEO da Itaueira Agropecuária, destaque no setor da fruticultura, lembrando que o País, que ocupa atualmente o terceiro lugar na produção de frutas do mundo, não consegue ultrapassar a 23ª colocação entre as exportações.
“Não tem como se sustentar toda uma indústria de sementes para todas as frutas e verduras que estão sendo produzidas no Brasil. Entretanto, se esta for pensada em termos de competitividade internacional, se investirmos a longo prazo, incentivando, para que o Brasil se torne autossuficiente e isso traga uma segurança alimentar para a população, aí sim haverá muito espaço para se fazer parcerias internacionais, trazer genética para cá e a partir daí fazer um trabalho”, finaliza.